31 de ago. de 2014

HILTON MILAN, O CONTADOR DE HISTÓRIAS


Dos anos que vivi em Glória de Dourados, como primeiro gerente da agência do Banco Bemat, de 1967 a 1973, tive a grata oportunidade de conviver com uma comunidade das mais ricas em termos de diversidade cultural, religiosa, política, enfim uma mescla de caracteres, que formam o caldeamento de um grupo social, raça ou povo.
Dessa convivência guardo com saudade a lembrança de amigos, pessoas maravilhosas, com as quais aprendi muito. Desde as mais simples, como os agricultores nordestinos, que eram a maior parte da clientela do banco, os estudantes, os comerciantes, os profissionais liberais, até as mais graduadas, como as autoridades do município.
Dentre essas pessoas que não vou aqui nomear, até porque não caberia nesta página, como também poderia esquecer alguém, visto que nossa memória falha vez ou outra, destaco a figura do nosso conterrâneo e munícipe Hilton Milan, o exator fiscal.
Foi um grande amigo. O Hilton era uma figura ímpar. Homem de peso, no sentido estrito do termo, pois era bem gordo. Devia pesar seus 120, 130 quilos bem distribuídos, pois era também um homem alto, dos seus 1,80m por aí. Era um contador de histórias nato. Nascido e criado em Dourados, viveu a transformação daquela vila rural na linda cidade que é hoje. Ali Hilton viveu sua infância, adolescência e juventude até se tornar a pessoa que foi e como o conhecemos.
Colecionou durante toda sua vida os episódios vividos no dia a dia de suas andanças pela vila de Dourados e adjacências, transformando-os em relatos que ele não cansava de contar com riqueza de detalhes e nomes dos protagonistas dos acontecimentos, sempre muito divertidos e engraçados, que ele com muita habilidade fazia com que a gente se sentisse fazendo parte do caso.
Entre os muitos dos seus casos, um é o de um Inspetor de Quarteirão, espécie de sub-delegado de um distrito, que era o responsável pela ordem e a Lei na localidade. Dom Recalde era um cidadão filho de paraguaios, nascido e criado ali no distrito de Itaum, onde fora alfabetizado, tinha lá seu pequeno comércio e exercia ali o tal cargo. Todo mundo era meio brasileiro, meio paraguaio, falava-se português, espanhol, tupi-guarani e levava-se a vida em bela harmonia, sem violência e também sem muitos compromissos. Todo mundo à vontade metidos nos seus xiripás, espécie de calça comprida e larga, bem solta, tipo bombacha, que usavam com sandálias. Tomava-se tereré o dia inteiro. Era só alegria. O tipo de vida que se pediu a Deus.
De certa feita o Governador do Estado Dr. Arnaldo Estevão de Figueiredo, foi cumprir um compromisso oficial de visita à cidade de Dourados e aproveitou o ensejo para inaugurar ali algumas obras. A cidade por sua vez, organizou uma festa para recepcionar a autoridade e fez com antecedência uma intensa programação para retribuir a atenção de Sua Excelência.
Convidaram todas as autoridades para comparecer às homenagens ao Governador e recomendaram que os homens deveriam estar de terno e gravata.
Quando Dom Recalde recebeu o convite ficou de imediato encabulado. Como ele que não tinha costume de usar terno, gravata, sapato iria enfrentar um dia todo vestido assim? Bem, mas é um dia só, vamos lá. Foi à cidade, comprou a vestimenta, os sapatos, enfim todos os apetrechos.
No dia do evento bem cedo, Dom Recalde se meteu dentro do terno preto de gasimira, espécie de lanzinha, bem quente, camisa de colarinho engomado, gravata, sapato de verniz preto bem brilhante, montou no seu cavalo e tocou para Dourados. Colocou o cavalo numa estrebaria ali perto da praça, onde poderia apanha-lo tão logo terminasse a solenidade.
Lá pelas oito horas, já bastante impaciente e com um sol já incomodando começou o desfile dos estudantes, depois vieram os soldados da polícia militar, depois os soldados do 11 RC, de Ponta Porã, que vieram desfilar em Dourados para homenagear o Governador. Nisso já era quase meio dia. E Dom Recalde lá em cima daquele palanque das autoridades, onde só se servia refrigerante e água sem gelo, perpassava pela sua mente a sua guampa de tereré com sua água bem fresquinha, seu xiripá bem largo e solto, sua sandália de couro cru mas frouxa e confortável, a sombra do seu caramanchão de maracujá e ele ali. Suor descendo pela barriga abaixo e os pés pegando fogo dentro daqueles sapatos de verniz, quando terminou o tal desfile.
Dom Recalde bendisse aos céus! “Gracias Diós”! Daqui a pouco vou estar no lombo do meu baio rumo ao meu paraíso. Vou me livrar desse castigo, mi Diós.
Que nada! Ainda tinham as obras que seriam inauguradas. Lá se foram os convidados para o local da inauguração e Dom Recalde junto. E o suor escorrendo. Já tinha chegado aos sapatos. Às 12:00hs anunciaram a última inauguração, seria a Casa Paroquial e a apresentação do novo bispo da Arquidiocese. Discurso vai, discurso vem e Dom Recalde já chorando por dentro, dizia:”Mi Diós que fue que hizo yo para merecerlo?” (Meu Deus, que foi que eu fiz pra merecer tudo isso?)
Lá pelas 13:00hs encerrou-se a festança, mas antes foi servida uma rodada de chocolate quente com bolo no salão de festas da Arquidiocese, que Dom Recalde teve ainda que enfrentar. Nessas alturas o terno já estava ensopado, os sapatos e até a gravata estavam encharcados. Mas afinal acabou o tormento de Dom Recalde.
Correu para a estrebaria, pegou seu cavalo, montou e saiu louco correndo pro seu sítio. Não quis nem olhar pra traz. Poucos minutos estava chegando pois seu pingo era realmente ligeiro. E por ser um grande amigo do seu animal resolveu também premiá-lo com a liberdade. Soltou o animal e abençoou seu trabalho.
Nem bem Dom Recalde tinha sentado no banco para tirar os sapatos, aquelas meias, aquela calça de gasimira, aquela camisa de colarinho, aquela desgraçada daquela gravata, eis que chega dois soldados da sua guarda pessoal dizendo:
“Senhor, le trago a cá um hombre qui estando borracho lo destruyó toda su família a golpes de machete. Lo que debemos hacer com el?” (Senhor trazemos-lhe um homem que por estar embriagado, destruiu sua família a golpes de facão. O que devemos fazer com ele?)
Dom Recalde pensou, pensou, por alguns instantes, refletiu sobre a vida por mais alguns instantes e soltou a sentença condenatória ao infeliz que havia cometido aquela desgraça tão grave e por isso merecia um castigo muito severo:
“Biem. No tenemos cárcere! Pero. Haga lo seguiente: Pongale um terno preto de gasimira, um sapato de verniz, uma camisa de cuello duro, uma corbata bien apretada, de-lhe uma taça de chocolate biem caliente e dejalo desgraciado que se vá embora”. (Bem. Não temos cadeia! Façam o seguinte: Ponham-no dentro de um terno preto de gasimira, metam-lhe um sapato de verniz, uma camisa de colarinho engomado com uma gravata bem apertada no pescoço, de-lhe uma xícara de chocolate bem quente e deixem que o desgraçado vá se embora).